Fazer as pazes com o meu corpo

Jovem mulher, loira, deitada num campo de flores amarelas, em posição fetal, a dar um abraço ao seu corpo

Terapias e mais terapias

Estou numa fase de mudanças e reconexão com o meu corpo.

Até à adolescência, os meus pais investiram imenso em mim, com terapias e tudo aquilo que possam imaginar. Desde fisioterapia, a terapia ocupacional, terapia da fala, hidroterapia, hipoterapia (com cavalos, para quem não sabe). Os meus pais chegaram a ir comigo a Londres e, anos mais tarde, desafiaram, frente a frente, o diretor clínico de um hospital português de renome. Fizeram tudo o que podiam por mim.

Entretanto, veio a adolescência e também a consciência de que eu nunca iria ficar “boa” (whatever this means), o que teve um grande impacto na minha saúde mental e motivação nas terapias todas que eu estava a fazer.

Além disso, a minha vida era só escola e terapias. Não tinha hobbies, vida social, ocupação de tempos livres, nada. A juntar-se à minha desmotivação e vontade de me focar noutros aspetos da vida, veio o facto de que quando se tem uma doença crónica e se passa da pediatria para os adultos (aos 18 anos), as coisas a nível hospitalar mudam radicalmente. Atualmente, o SNS não dá resposta, por exemplo, a nível de fisioterapia contínua em adultos com doenças crónicas. A mentalidade é do género — não existe cura, logo não vamos investir em ti. Vamos sempre para o fim da lista, e, portanto, nunca temos vaga em hospitais públicos. Conclusão, desliguei-me completamente do meu corpo. A filosofia altamente capacitista da sociedade entranhou-se em mim e também eu adotei o discurso do “o meu corpo é deficiente / doente, nunca vou ficar «bem», logo não vale a pena perder tempo com ele.” Acho que conseguem perceber onde é que eu estou a querer chegar com esta história. As consequências desta minha decisão (no final do dia, também foi efetivamente uma decisão minha) estão cada vez mais presentes. Estou a perder capacidades (força muscular) a uma velocidade galopante (pelo menos, na minha perspetiva), estão a aparecer mazelas e, inevitavelmente, algumas dores. Vale relembrar que tenho 27 anos. 

Claro que nem tudo é mau e se perdi capacidades físicas, ganhei imensas outras capacidades intelectuais e sociais. Fiz uma licenciatura (naquilo que gosto e sou boa) e um mestrado e fui sempre aluna de mérito; tive uma vida académica muitíssimo feliz; tenho um emprego estável; tenho conseguido juntar dinheiro e construir alguma independência financeira; fiz amigos para a vida e cresci muito enquanto pessoa. Portanto, também não há muito espaço para arrependimentos e estou muito grata pelo percurso que fiz até agora.

Estando eu, neste momento, numa fase mais estável (espero eu), e com assistência pessoal, decidi há uns meses que estava na hora de me focar no meu corpo e bem-estar físico.

Cidade Invicta

O Porto apareceu após uma série de pesquisas na internet e leitura de vários artigos científicos (yes, I’m that person).

Houve um que se destacou por mencionar exatamente aquilo pelo qual eu procurava: o impacto das máscaras de ventilação na estrutura maxilofacial de pessoas com doenças neuromusculares (que é o meu caso). Pois bem, para surpresa minha, no meio de muitos artigos de autores estrangeiros, este tinha autores com nomes bastante familiares. Tão familiares que eram, efetivamente, nomes portugueses.

O estudo tinha sido orientado por um professor da Faculdade de Medicina Dentária do Porto. Encontrei o contacto do médico e guardei-o. Muito pouco tempo depois, fui ao Encontro Nacional de Doentes Neuromusculares, da APN, e, conversa puxa conversa, não é que estavam lá as crianças que apareciam neste artigo científico? Foi um desenrolar de coincidências muito felizes que, infelizmente, teve um fim muito trágico. Consegui marcar consulta com o médico, para o final de fevereiro deste ano, que nas nossas trocas de e-mails, se demonstrou muito acessível e disponível. Cheguei ao Porto e não houve consulta. O médico tinha acabado de falecer, vítima de doença súbita, durante o almoço que antecedia a minha consulta. Não soube do desfecho no próprio dia, pois apenas me disseram que o médico se tinha sentido mal e tinha ido para o hospital. As médicas que me receberam e justificaram o cancelamento da consulta ainda estavam de lágrima no olho e visivelmente combalidas. Vim depois a saber que o médico sentiu-se mal na presença delas. Ainda assim, ofereceram-se no próprio dia para me consultar na mesma. Ao que parece, já sabiam da minha existência e sabiam que eu ia de propósito de Lisboa para aquela consulta… No dia a seguir, quando soube do falecimento do médico, fiquei completamente atordoada, como podem imaginar…

Concluindo: vim também a saber que a médica que me atendeu, era uma coautora do artigo deste médico, e fazia parte da sua equipa. Como tal, fiquei com esta médica. Ontem foi a terceira vez que lá fui e adivinham-se tempos de várias experiências e estudos. Está tudo em aberto, mas finalmente encontrei profissionais de saúde (médicos, mais precisamente), dispostos a experimentar, questionar métodos tradicionais e convencionais, disponíveis para pensar fora da caixa e, principalmente, para me ouvir e considerar-me como membro ativo na construção de soluções. As relações entre médicos e utentes deviam ser sempre assim — relações de parcerias e não relações de poder. Os médicos não são deuses, não sabem tudo e nunca terão a peça chave para se encontrar as respostas mais adequadas e ajustadas a cada pessoa: a experiência do utente; o testemunho na primeira pessoa. Deste modo, só assim faz sentido, pelo menos, para mim, que tenho uma doença rara e não me encaixo na maioria das soluções (ou não soluções) apresentadas.

Em busca de qualidade de vida

Além da medicina dentária, já estou (bem, ou, pelo menos, melhor) encaminhada nas especialidades de psiquiatria, ginecologia e gastroenterologia (tenho uma sonda, para quem não sabe). São todos médicos que me começaram a seguir há pouco tempo, fora do hospital que tem sido a minha casa desde criança. Antigamente, já morando na margem sul, fui seguida durante vários anos no Hospital Pediátrico de Coimbra, que, na altura, era uma enorme referência nos cuidados pediátricos em Portugal. Dada a distância e a formação de uma teórica equipa multidisciplinar em Lisboa para pessoas com doenças neuromusculares, mudei para um hospital mais perto. Nunca mais procuramos outros profissionais.

Como muitos sabem, sou naturalmente inconformada e altamente exigente. Se, de momento, as soluções apresentadas não me satisfazem, há que procurar outras e voltar a colocar-me no centro da equação, e encontrar profissionais capazes de o fazer também. Não estou em busca de milagres, nem curas. Quero, sim, qualidade de vida, manutenção efetiva da minha saúde, e uma gestão de riscos como deve ser, tal como sei que tenho direito, que mereço e sei que é possível alcançar. No final das contas, a humanidade já foi à lua…

Próximo desafio? Voltar a fazer fisioterapia de forma regular, permanente e compatível com a minha vida enquanto pessoa que trabalha e tem uma energia diária limitada, sem que tenha de vender um rim. Tive consulta esta semana e ainda este mês devo ter mais novidades.

Além disto, estou a realizar, de forma autónoma e com a colaboração de técnicos de saúde que acreditam em mim, experiências com novas interfaces de ventilação. A minha médica sabe, mas temos visões diferentes, pelo que este caminho terei de ser eu a trilhar sozinha, com a ajuda de outras pessoas.

Enquanto estamos vivos, há sempre coisas que são possíveis fazer para aumentar a nossa qualidade de vida e atualmente é esse o meu maior objetivo.

Não esperem uma atualização constante das minhas novas consultas, tratamentos e experiências. Sou uma pessoa que vive muito à base de expectativas (estou a tentar melhorar este aspeto) e se já tenho dificuldades em lidar com as minhas, a dificuldade acresce quando tenho de gerir as expectativas das outras pessoas também.

Por enquanto ficam com um cheirinho e, quando achar que fizer sentido, darei novidades.

Obrigada pela vossa atenção 🫶🏻

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Raquel Banha

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