É só mais um dia mau
Estou em casa há 2 semanas. O mundo parece-me igual – as paredes, as janelas, as portas e os 24 degraus. Tudo exatamente no mesmo sítio, tal como a minha secretária e computador, o meu recanto favorito. Ou, pelo menos, o lugar onde mais facilmente me consigo alienar da realidade.
Tenho acordado sempre depois das 14h e raramente me deito antes das 4h da manhã. Ontem, pela primeira vez desde há bastantes dias, não tive nenhum pesadelo. Muito pelo contrário, tive um sonho bom. Tão bom que conseguia superar qualquer realidade que eu já tivesse presenteado até hoje. Isto é, com ou sem corona. Quando acordei, senti um aperto no coração, daqueles que nos fazem acreditar que o nosso peito de facto mirrou durante esse momento. O aperto era tal que me recusei a levantar. Recusei pôr os pés no chão (ou, antes, as rodas) e cair na realidade. Por isso, fiz questão de voltar ao sonho. Voltei e despedi-me dele apenas às 16h30, hora em que me levantei.
Saí da cama, lavei-me, comi e voltei para o mesmo sítio de sempre: o meu computador. É nele que tenho conseguido viver. Falo com quem posso e, o melhor de tudo, posso ver séries e imaginar que a minha vida é tão fixe como a qualquer personagem medíocre e fútil de uma dessas sitcoms da moda.
Há duas semanas que não recebo visitas, que não sinto nenhum calor na barriga, nenhum abraço ao coração e nenhum beijo na alma. Há duas semanas que não vejo ninguém. Há duas semanas que não me sinto viva e desejada.
Há quase 20 anos que moro num prédio com 24 degraus, sem elevador, qualquer plataforma elevatória ou rampa. As escadas são estreitas, não tendo largura suficiente para se instalar nenhum destes equipamentos de mobilidade.
Há 20 anos que namoro a minha varanda solarenga, onde nela posso sentir o sol na pele, a aragem na cara e a vida no olhar. Vida essa que não é minha, claro. Vejo os gatos a treparem os troncos das árvores e os pássaros a voarem. Lá ao fundo consigo ver a Arrábida e quase sempre se vê um ou dois aviões a rasgarem o céu de nuvens rosas e alaranjadas. Oiço também as crianças a rir e a correr, os vizinhos a cuscar e os carros a passar. Oiço, observo, mas não vivo. Ainda assim, é o local da minha casa onde mais viva e livre me sinto. Aprendi a viver através dos outros – das pessoas, dos animais, das plantas. Observo, logo, vivo. Mas, será suficiente?
Todos os anos passo no mínimo 1 a 2 mês sozinha. O verão é a altura do ano mais triste e solitária para mim. Aquilo que hoje não posso devido à quarentena, há 23 anos que não posso, quando os meus pais não me podem transportar. Há 23 anos que nunca tive umx amigx que quisesse dormir em minha casa. Há 23 anos que nunca dormi fora de casa sem ser com a família. Em 23 anos nunca fui ao café em frente à minha casa, só porque assim me apetecia. Faz mais de um ano que não saio à noite com amigxs.
Por mais que o tempo passe e a solidão seja uma constante, não há meio de me habituar a estar bem comigo mesma, sozinha. É cada vez mais doloroso e solitário. O que começa por ser uma barreira física, transforma-se no esquecimento e ausência das pessoas e culmina na minha infelicidade crónica e grande resistência em de facto sair de casa quando posso. A sociabilidade é um músculo que se não for devidamente exercitado, enfraquece e deixa de fazer a sua função. Quanto mais distantes estamos, mais distantes ficaremos.
A neura, a irritabilidade e depressão que todos vós sentem nesta quarentena faz parte de mim desde o dia em que nasci.
E, como eu, existem milhares de pessoas forçosamente em quarentena todos os dias. Sejam elas pessoas com diversidade funcional ou idosos isolados e abandonados.
A solidão sempre existiu. Com ou sem corona.
Mas não faz mal. É só mais um dia mau 😊
“Não quis guardá-lo para mim
E com a dimensão da dor
A legitimar o fim
Eu dei
Mas foi para mostrar
Não havendo amor de volta
Nada impede a fonte de secar
Mas tanto pior
E quem sou eu para te ensinar agora
A ver o lado claro de um dia mau
Eu sei
A tua vida foi
Marcada pela dor de não saber aonde dói
Vê bem
Não houve à luz do dia
Quem não tenha provado
O travo amargo da melancolia
E então rapaz
Então porque a raiva se a culpa não é minha
Serão efeitos secundários da poesia
Mas para quê gastar o meu tempo
A ver se aperto a tua mão
Eu tenho andado a pensar em nós
Já que os teus pés não descolam do chão
Dizes que eu dou só por gostar
Pois vou dar-te a provar
O travo amargo da solidão
Ohhh-hou (…)
É só mais um dia mau, mau, mau (x2)
É só mais um dia mau (x3)”
Comments
Gostei muito do texto/desabafo.
Espero que esteja bem.