Cultura queer, sexualidade e deficiência

Fotografia: Nuno Ferreira Santos (Público)

Fui uma criança bastante maria-rapaz. Queria usar calças largas, bonés ao contrário, correntes ao pescoço, e achava mais piada às brincadeiras dos rapazes do que das raparigas. Não ia a lado nenhum sem o meu gameboy e adorava beyblades.

Não tenho irmãos, mas tenho dois primos da mesma geração que eu, que, durante a infância, fomos muito próximos. Lembro-me de uma vez estar com um deles, que tem exatamente a mesma idade que eu, e, de repente, ele ter-se virado para mim para perguntar “tu és maria-rapaz, não és?”. Quando ele me perguntou isto, senti imediatamente como se tivesse sido apanhada a fazer (ser) algo que não devia. Só pensei “pronto, já fui caçada”. A minha prima mais velha, na altura adolescente, irmã do primo com quem eu estava, muito chocada com a situação, exclamou “isso não se diz!”, reforçando o sentimento de culpa que eu sentia naquele momento.

Ao mesmo tempo que o mundo masculino me chamava a atenção, nunca deixei de ter a minha energia feminina. Sempre fui muito vaidosa, era completamente doida por bonecas, adorava maquilhagem, entre outras características que associamos ao ser-se fêmea. No fundo, sempre tive um pouco das duas energias, embora que com o passar da puberdade, me tenha tornado mais feminina.

Ao brincar com bonecos, tal como todas as crianças, a uma certa altura, fingia que eles tinham relações românticas. Mas havia uma particularidade: gostava de misturar as coisas e colocar, também, barbies com barbies e kens com kens. Juntar dois bonecos do mesmo género, talvez por não ser comum e de se tratar de um tabu, dava-me uma adrenalina que o faz de conta heteronormativo não me dava. 

Crescer no mundo do teatro, mais especificamente do teatro musical, permitiu-me ter contacto com as mais variadas formas de amor e sexualidade. A primeira vez que vi dois homens beijarem-se deveria ter uns 5 anos. Para mim, um casal de homens gays sempre fez parte da minha conceção de normalidade. Não me apercebi sequer do preconceito e opressão existente na comunidade até ao final da adolescência, pois tive a sorte de crescer numa gigante bolha de amor. Este contacto antecipado com diferentes expressões de amor resultou numa consciência aguçada da diversidade humana e do leque de possibilidades que existem para amar e ter prazer. Ensinou-me a importância da liberdade e autenticidade ao sermos nós, e unapologetic apenas nós. Ensinou-me que o amor não existe dentro de caixas fechadas e que o prazer está onde nós bem entendermos. 

Marcha do orgulho LGBTI+ de Lisboa 2024: Colombina Clandestina com Raquel Banha, Catarina Vitorino, Diana Santos e Pilar Monteiro na linha da frente (da esquerda para a direita)

Sempre me considerei uma mulher cisgénero heterossexual. Nunca me apaixonei por nenhuma pessoa que não fosse um homem cisgénero heterossexual. Mas, se assim é, onde se encaixa a adrenalina e fervura na barriga que sentia quando brincava com bonecos do mesmo género? Onde ficam os sonhos proibidos com mulheres e transexuais, por muito esporádicos que possam ser? Onde se insere a minha convicção de que pele é pele e é possível sentir e proporcionar prazer com e a qualquer pessoa, independentemente do género? 

Nunca senti necessidade de me catalogar sexualmente ou identitariamente. Acredito que a sexualidade é um espectro, tal como a identidade de género, e a fluidez faz parte da nossa natureza. O espectro não tem de ser binário. Pode ter mais dimensões e é através dessas mesmas dimensões que eu vejo e sinto o mundo.

A descoberta e a resposta à questão se pertenço, ou não, à comunidade LGBT ainda está em construção. No entanto, tenho a certeza que é na comunidade LGBT onde mais amor e empatia sinto, aliados a uma segurança ímpar que dificilmente encontro noutra comunidade. É na comunidade LGBT onde me sinto confiante o suficiente para expressar a minha identidade e sexualidade (sejam elas quais forem), de forma segura e o mais livre possível. É nesta comunidade que me sinto compreendida. É aqui que se aprende a amar, orgulhosamente, quem nós somos. Foi aqui que aprendi a ser ousada, a ter a coragem para ser extravagante sempre que assim me sinto, e para explorar as minhas diversas formas de expressão.

Dia 29 de maio deste ano fui ao Coliseu dos Recreios ver o concerto do artista australiano Troye Sivan, um novo ícon do mundo gay. Acho que nunca me senti tão bem e num espaço tão seguro, mas, ao mesmo tempo, tão libertino, como neste concerto. Infelizmente, a falta de acessibilidades priva-me de viver a noite gay de Lisboa. Nunca fui ao Trumps, embora tenha quase a certeza que poderia ser facilmente um dos meus sítios favoritos para dançar e exprimir-me. No dia do concerto, o coliseu transformou-se numa gigantesca discoteca LGBT. Senti-me uma criança a visitar a Disneyland pela primeira vez. A plateia estava repleta de pessoas queer, vestidas com todas as cores do arco-íris. O glitter e as lantejoulas faziam parte da indumentária do público geral e eu não fui exceção. 

Ali estava eu, feliz, bem acompanhada por uma amiga que decidiu acompanhar-me à última hora, e mais confiante do que nunca. A luminescência da minha temperatura corporal fazia-se sentir através do meu sorriso e dos meus movimentos, enquanto dançava. Por momentos só queria que aquela energia continuasse no mundo exterior e a vida fosse sempre assim — colorida, brilhante, livre e feliz.

Comunidades unidas pelo trauma

Ao longo dos últimos anos fui observando, por dentro e por fora, a vivência da sexualidade das pessoas pertencentes à comunidade LGBT e das pessoas com deficiência. As experiências têm contornos muitíssimo semelhantes e cruzam-se em vários pontos comuns. 

Há uma cena, na série Riverdale, da Netflix, em que, no episódio 3 da segunda temporada, o adolescente Kevin, sendo um dos poucos homossexuais a viver numa pequena localidade dos Estados Unidos, é apanhado em flagrante por duas amigas, no seu ritual de passagem pela floresta, onde costuma ir fazer sexo, normalmente com homens mais velhos, não assumidos. Depois, segue-se uma discussão entre os 3, onde a parelha de amigas tenta dissuadir o Kevin de continuar à procura de sexo na floresta, enumerando os vários perigos a que se sujeita, frisando de que ele “não tem” de fazer aquilo. O Kevin, frustrado com incompreensão das amigas e a sua tentativa ingénua de salvamento, acaba por despejar uma série de argumentos e razões pelas quais ele mantém aquele ritual, referindo-se à notória falta de igualdade e oportunidades num mundo esmagadoramente heteronormativo, acessível apenas para quem é heterossexual, onde é possível explorar o sexo, as relações e o autoconhecimento de forma saudável.

Embora eu e o Kevin estejamos em situações diferentes, revi-me totalmente nesta cena, que pode muito bem ser aplicada a qualquer grupo social oprimido. A cena teve um impacto em mim tão avassalador que me levou às lágrimas e a revê-la vezes sem conta.

Para ambas as comunidades há uma certeza — o acesso a uma sexualidade saudável, na sua plenitude, não é igual à do resto do mundo normativo. Não temos as mesmas oportunidades, nem temos as mesmas opções. No caso das pessoas com deficiência heterossexuais, não por limitarmos o nosso leque de opções, mas porque somos automaticamente excluídas das opções da maioria das pessoas. Não somos considerados como potenciais parceiros sexuais e/ou românticos. Esta limitação que nos é imposta, muitas vezes encurrala-nos em situações mais perigosas, ou tóxicas, por ser, grande parte das vezes, a única oferta que temos. 

Não querendo rotular o mundo fetichista com uma conotação negativa, mas, quando há falta de oportunidades e a experiência traz-nos alguma imaturidade, é muito fácil levarmo-nos por quem nos dá mais atenção, que, no caso das mulheres, muitas vezes pode estar ligada a submundos da sexualidade. Se por um lado os fetiches são uma parte natural e expectável da sexualidade humana, por outro lado, a sua exploração requer uma maturidade sexual mais sólida. Ingressar pelo mundo do fetiche numa primeira fase do desenvolvimento sexual, pode abrir várias feridas, e colocar-nos em situações altamente desconfortáveis e perigosas, já que não temos referências positivas de pessoas na mesma condição que nós e o conhecimento de limites é muito reduzido. A falta de experiência torna-nos mais vulneráveis, logo o risco de violência sexual aumenta drasticamente.

Ainda no seguimento da falta de opções, o facto disto ser uma realidade para muitos de nós, há uma grande tendência para nos mantermos em relacionamentos tóxicos e abusivos, devido à premissa de que já é uma “sorte” termos encontrado alguém que “gosta” de nós o suficiente para ficar connosco. Isto não só é um pensamento capacitista que pode vir de nós próprios, como pode vir de quem nos rodeia. Inclusive, argumentos como estes podem, e são, muitas vezes, utilizados pelos parceiros, como forma de manipular e subjugar a pessoa com deficiência. Por muito capacitista que a sociedade possa ser e tenhamos, efetivamente, opções limitadas, nada pode justificar a continuação de um relacionamento abusivo, seja ele físico ou emocional.

Há duas canções, de artistas queer, que ressoam em mim como mais nenhuma canção ressoa, dando voz às minhas experiências sexuais e românticas. 

A nova estrela em ascensão, Chappell Roan, tem liderado as paradas musicais com o seu novo single “Good Luck, Babe!”. A cantora americana fala-nos sobre uma pseudo-relação com uma mulher que ainda não tinha saído do armário e se recusava a reconhecer a relação e os seus próprios sentimentos.

It's fine, it's cool
You can say that we are nothing, but you know the truth
And guess I'm the fool
(...)
I don't wanna call it off
But you don't wanna call it love
You only wanna be the one that I call baby

A música tem tido um êxito estrondoso, não só pela sua sonoridade cativante, mas também porque uma imensidão de pessoas se identificou com esta experiência. É uma experiência universal das pessoas queer e, provavelmente, de muitas pessoas com deficiência também. 

Há um certo pudor e vergonha que muitas pessoas sem deficiência sentem ao sentirem-se atraídos ou apaixonados por pessoas com deficiência. Estas emoções são recalcadas e não assumidas, muitas vezes levando a situações de manipulação. “Estás a fazer filmes na tua cabeça”, “isto não é o que parece”, “somos só amigos”, “gosto mesmo muito de ti e és muito especial, mas apenas como amiga/ amigo” são frases típicas usadas por quem nos quer fazer acreditar que, mesmo que os sinais sejam mais do que óbvios de que há interesse, mesmo que a relação seja sólida e alimentada regularmente por ambas as partes e que a química seja sentida até pelas pessoas que nos rodeiam, somos nós que estamos iludidos e a ver coisas onde elas não existem.

A segunda música retrata precisamente a temática da cena da série Riverdale que vos falei há pouco. Chama-se “One of Your Girls” e é do australiano Troye Sivan, que tive o prazer de ver ao vivo no tal concerto de 29 de maio.

One of Your Girls explora, ao som de música dance pop melancólica, precisamente o interesse proibido dos homens autoproclamados heterossexuais em ter encontros sexuais com homens gay. 

Give me a call if you ever get lonely
I'll be like one of your girls or your homies
Say what you want and I'll keep it a secret
You got the key to my heart and I need it
Give me a call if you ever get desperate
I'll be like one of your girls

Mais uma vez, estamos perante a vergonha e o pudor das pessoas serem quem são e sentirem atração por quem sentem. A narrativa com as pessoas com deficiência, mesmo quando são heterossexuais, não é diferente.

Somos objetos de desejos não assumidos. Despertamos curiosidade e interesse para experiências sexuais, mas em segredo. Somos fetichizados, mas nunca romantizados. Colmatamos vazios e vontades de quem nunca tem coragem para assumir o que sente e o que quer.

Para quem está de fora, pode ser fácil pensar-se que é só dizer que não. Que é só recusar e que basta ter mais amor-próprio e respeito por nós mesmos, para não cairmos em situações tóxicas e abusivas. Contudo, como se recusa algo que, à partida, foi sempre aquilo que nos foi incutido e é a única forma de afeto que se conhece? Como é que um pobre pode negar migalhas, se a cavalo dado, nunca se pode olhar ao dente?

O segredo está na visibilidade e normalização da existência das pessoas com deficiência. Ao não existirem acessibilidades (físicas, sensoriais e/ou atitudinais), não somos visíveis, pois não conseguimos frequentar os espaços públicos e, como tal, não somos sequer considerados como potência sexual e romântica. Por outro lado, estas acessibilidades não existem, porque não somos visíveis, logo, somos esquecidos e a sociedade acha que investir em acessibilidades não se justifica, pois somos “poucos” (mentira — estamos, é, presos em casa ou em instituições). É um círculo interminável, até que alguém bata com o pé, as rodas ou as bengalas. 

Este círculo é quebrado quando nós, pessoas com deficiência, tomarmos consciência que a nossa existência é, também, política. O facto de irmos trabalhar, fazer compras, irmos passear, sair à noite, entre tantas outras atividades banais de uma pessoa normativa (quando existem acessos), torna-nos visíveis. Esta visibilidade, e consequente normalização da nossa existência, a longo prazo vai alterando a perceção das pessoas, nomeadamente a nível sexual e romântico. Pouco a pouco, vamos entrando na realidade e no imaginário da sociedade e tidas em conta nas mais diversas áreas da vida humana.

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Raquel Banha

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