Não é sobre talento, é sobre justiça

Fotografia: Daniel Rocha (Público)

Sou filha do palco há mais de 26 anos. Venho de uma família ligada ao teatro e, além disso, sou uma pessoa com deficiência. Ao longo dos anos, vi atores homens a fazerem de mulher, vi novos a fazerem de velhos, velhos a rejuvenescer e, claro, vi atores sem deficiência a vestir papéis de personagens com deficiência.

Algumas companhias de teatro, dada a conjuntura socioeconómica do setor da cultura e, portanto, com recursos financeiros limitados, trabalham essencialmente sempre com a mesma equipa. Há acumulação de tarefas e uma adaptação de cada peça para incluir todos os atores. Conheço de muito perto esta realidade. Isto significa que cresci a ver atores a desdobrarem-se em mil e umas personagens, algumas das quais que não correspondiam à natureza dos atores.

Não nasci ativista. Durante a maior parte da minha vida, fui uma mera observadora muda. Nunca me chocou ver atores a desempenharem personagens sem propriedade. Há, efetivamente, arte, talento e beleza na metamorfose. É indiscutível. Desde a pesquisa e investigação que um ator tem de conduzir, à aprendizagem e consequente construção das intenções, dos tiques, das formas e das expressões intrínsecas à natureza de um certo personagem. É preciso mestria e conhecimento. Muito. Não há negação possível.

Mas antes da arte, tem de vir a justiça social. No teatro tradicional, uma pessoa gorda dificilmente vestirá um papel em que uma das características basilares da personagem seja a magreza (uma peça sobre anorexia, por exemplo). Uma pessoa negra, provavelmente, nunca irá representar uma personagem em que ser-se branco é relevante para a narrativa. Uma pessoa com deficiência visível, terá sempre de encarnar papéis de pessoas com deficiência.

Corpos reféns

Todos somos reféns do nosso físico. Todos temos uma altura, uma cor de pele, uma idade, um corpo, uma voz. Sim, existem perucas. Temos maquilhagem, figurinos, efeitos especiais, alternativas cénicas e podemos jogar com as luzes para brincarmos ao faz de conta. No entanto, quem faz de conta, não será sempre o mesmo tipo de pessoas?

E quando temos uma característica tão distinta e imutável, que só nos permite fazer personagens com essa mesma característica? Conseguirei eu, alguma vez, desempenhar um papel de uma personagem que não ande em cadeira de rodas, precise de um ventilador para respirar e tenha uma voz… diferente? Se nos papéis de personagens com diversidade funcional não são contratadas pessoas efetivamente com deficiência, que outros papéis poderão as pessoas com diversidade funcional desempenhar?

As histórias mais representadas continuam a ser as dos brancos, cisgénero, heterossexuais e sem deficiência. As poucas oportunidades que existem de encarnar personagens com características biológicas e sociais não normativas devem ser reservadas a quem de direito. Queremos poder contar as narrativas das nossas pessoas, das nossas comunidades. Queremos ocupar lugares que, também, são nossos. O mundo é um palco e o palco é um mundo, não é?

A História repete-se

Na época de Shakespeare, as mulheres não podiam representar. A Julieta, de Romeu e Julieta, era retratada por homens. Nos tempos áureos da Ópera, crianças do sexo masculino eram castradas de modo a preservar as suas vozes agudas. Antigamente, atores brancos, pintavam-se de preto quando queriam desempenhar personagens racializadas. Aos dias de hoje, olhamos para estas situações com pudor e indignação.

É assim que as pessoas trans, como a Keyla Brasil, que protagonizou um momento de protesto no passado dia 19 de janeiro, no Teatro São Luiz, olham quando um ator masculino cisgénero assume um papel de uma personagem transexual. De maneira idêntica, é assim que eu me sinto ao ver um Corcunda de Notre Dame (comummente representado em Portugal) desempenhado por um ator que não tem deficiência. Da mesma forma, é assim que as pessoas de etnia cigana vêm uma atriz branca a vestir a pele de Esmeralda.

Isto não é sobre os homens que fizeram de mulheres, ou sobre os brancos que fizeram de negros. É sobre as mulheres que não tiveram oportunidade, sobre os negros, sobre as pessoas com deficiência, a comunidade LGBTQIA+ e todos aqueles que não puderam e continuam a não poder subir ao palco. Não é sobre talento, é sobre justiça. O talento prevalecerá no dia em que não houver desigualdade laboral e artística. Nesse dia, a salada pode e deve ser mista.

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Raquel Banha

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