Burnout aos 24 anos: um testemunho

Índice

PARTE I

O momento eureka do abismo

Em maio celebrou-se o mês da consciencialização para a saúde mental, um tema que me é muito próximo e do qual faço questão de falar abertamente. É uma das minhas grandes bandeiras.

No final de 2021, comecei a escrever um texto, uma espécie de livro de condolências, onde quis despejar tudo o que de mau me aconteceu nos últimos tempos, principalmente nesse ano: a minha avó morreu com cancro, o meu tio com covid, fiquei desempregada, entre outros tantos acontecimentos traumáticos que ditaram 2021 como sendo, até à data, o pior ano da minha vida. Escrevi, escrevi, escrevi, até que me fartei de queixar. Faz bem libertar-nos de todas as mágoas, seja de que maneira for, claro. Há quem pratique desporto, há quem medite, e há outros, que, tal como eu, escrevem. Ainda assim, a energia daquele texto era tão negativa que até eu própria estava a ficar incomodada com tanto lamento e reclamação. Não sei se um dia irei partilhar esse texto que, entretanto, nem cheguei a acabar, mas foi  a partir de excertos desse artigo que elaborei o que vos vou agora apresentar.

Em 2019, quando ainda estava a fazer a minha tese de mestrado, aceitei um convite, de uma amiga de longa data da minha família, para integrar um projeto cultural, com contrato e por um valor bem simpático para quem ainda não tinha sequer terminado o mestrado. Armei-me em corajosa e assinei um contrato que incluía tarefas para além das quais eu tinha competências. Quando dei por mim, estava a gerir redes sociais, a enviar newsletters, a fazer programação HTML/CSS de um website e design. Estava praticamente sozinha no meu “departamento”, a fazer coisas sem certeza e ninguém a quem recorrer que percebesse realmente do assunto. 

Quando ainda não trabalhava e estava a ter aulas na faculdade, já demonstrava leves sinais de um possível esgotamento. Estava metida em tudo o que era possível, para além do trabalho de manter uma bolsa de mérito. Núcleo de estudantes fundado por mim, associação de estudantes, tuna feminina e outras mais coisas. Além disso, ajudava os meus pais nas suas respetivas empresas. Em 2019 decidi abandonar todos os projetos para me dedicar à dissertação final de curso. Mas não se enganem — fazer uma tese pode ser tão ou mais moroso do que o conjunto de todas as minhas atividades extracurriculares (provavelmente mais). Infelizmente só cheguei a essa conclusão tarde demais.

Arranjei este novo emprego enquanto ainda terminava a tese e deixem-me que vos diga que me custou horrores. Estive quase para desistir da dissertação. Dia sim, dia não, tinha um breakdown, como se eu estivesse numa maratona e me tivessem faltado as forças das pernas e a única opção fosse rastejar em alcatrão fervente até à meta. A dor da pele queimada a rasgar no chão era equivalente ao meu esforço titânico emocional para me aguentar. Fazer uma tese é um caminho demasiado solitário, mas lá consegui terminá-la. Assim que o fiz, comecei a trabalhar a tempo inteiro. Não tive descanso. Pelo menos, o necessário para conseguir realmente recuperar e recarregar as baterias de modo a focar-me a 100% nesta nova etapa da minha vida — o ingresso no mercado de trabalho.

Apercebi-me do meu estado lastimável quando, após ter apresentado a minha dissertação, ter sacado um 18 bem gostoso e me ter metido no carro para ir embora, ter desatado a chorar. Ao contrário do expectável, não foi um choro de felicidade ou de alívio. Foi, na verdade, de frustração comigo mesma por me ter continuado a sentir na merda, mesmo após ter acontecido algo, teoricamente, muito bom: a obtenção de uma das melhores notas do meu curso e o término da minha passagem pela faculdade. Além disso, estava empregada e com contrato. O que mais poderia uma pessoa recém-formada querer?

Estava infeliz com a minha vida. Não estava bem no local onde estava a trabalhar e todos os dias eram um sacrifício. Assim continuei até final de outubro de 2020, quando comecei a ter ataques de pânico, acessos de choro constantes e pesadelos diários. 

Para quem não está familiarizado com ataques de pânico, posso explicar este em específico: estava no sofá, com os meus pais, a ver um filme; estava confortável, numa situação de suposta segurança e à vontade. De repente, o meu coração dispara (até aos 120 bpm), sinto uma adrenalina desmedida a subir-me pela espinha e começo a ter suores frios.

Contrariamente àquilo que nos é apresentado pelos media e sociedade em geral, um ataque de pânico não é sinónimo de berros e choros compulsivos. Há ataques de pânico silenciosos e que passam despercebidos para quem nos rodeia e está mesmo ao nosso lado. Os meus, são sempre assim. Só eu os sinto, só eu os sofro. Naquele dia, o ataque foi, também ele, silencioso. Apenas me senti forçada a contar aos meus pais, de forma muito séria e demasiado sossegada para alguém sob um enorme stress, porque julguei que podia perder os meus sentidos a qualquer momento. 

O meu primeiro pensamento, como já é habitual em mim, é pensar que estou a ter um ataque cardíaco e vou, efetivamente, morrer. A parte racional do meu cérebro desliga-se por completo e foge da realidade. Sou, inclusive, capaz de fabricar sintomas físicos, despoletados apenas e somente pelo stress e ansiedade subconscientes. Na altura, pedi aos meus pais para irem buscar, imediatamente, o meu oxímetro (aparelho que mede o oxigénio do sangue e os batimentos cardíacos). À medida que observava a frequência cardíaca no visor da máquina, fui tentando fazer alguns exercícios de grounding, para tentar voltar à realidade. Há várias técnicas. A que melhor resulta comigo é focar-me nos meus cinco sentidos: fixar o olhar num objeto, sentir onde o meu corpo está a tocar, que sons estou a ouvir, que cheiros a sentir e que sabores estou a paladar. Aos poucos, fui descendo à terra e percebendo que estava viva, bem, e acabara “apenas” de ter um enormíssimo ataque de pânico. Foi aqui que tive o meu momento eureka do abismo. Tinha atingido o meu limite.

PARTE II

Uma anedota, uma triste

Aos 24 anos tive o meu primeiro esgotamento nervoso. Uma condição que, pensava eu, só afetava os mais velhos. Aos 24 anos pus a minha primeira baixa psiquiatra. Senti-me fracassada. Uma anedota, uma triste. Nos últimos cinco anos tinha lutado ofegantemente para estar, sempre, na linha da frente. Ficar para trás não estava nas minhas opções. Queria estar entre os melhores e, sempre que possível, garantir que o primeiro lugar fosse meu. A faculdade refinou esta minha tendência natural de ambição desenfreada. O meu percurso no ensino superior foi pautado de conquistas constantes, que aguçavam diariamente a minha sede por outras mais vitórias. A sede era tanta, tanta, que acabou por me sufocar.

Estive de baixa durante 4 meses. O aproximar do final deste período trouxe-me uma nova ansiedade: ter de voltar para o mesmo local de trabalho. Sabia que não podia voltar para o mesmo sítio, portanto, vim-me embora (consegui sair por mútuo acordo para ter direito ao subsídio de desemprego). Estive um ano e alguns meses parada, em casa, isolada do mundo, devido à pandemia que, entretanto, decidiu aparecer. Tentei, durante quase um ano, arranjar um novo emprego ou um estágio profissional. Fui a dezenas e dezenas de entrevistas, mandei outras tantas dezenas de CVs, até que comecei a desesperar. Era quase sempre recusada e, das poucas vezes em que não era, acabava por ser eu a dizer que não, dada as condições vergonhosas que eram oferecidas (os estágios não remunerados deviam ser criminalizados). Ainda tentei aventurar-me pelo freelance, mas não estava minimamente em condições psicológicas para levar avante um projeto sozinha. Eu queria precisamente o oposto. Queria pessoas, queria trabalho em equipa, queria companhia. Foram 3 anos em casa sozinha, a contar com o ano da tese. Andava a dormir até às 15h e estava, literalmente, a dar em doida.

Ao longo desta procura intensa por trabalho e de me sentir, constantemente, desmotivada, continuei, ainda assim, agarrada aos meus objetivos e crenças. Queria, à fina força, entrar numa empresa grande, reconhecida ou, pelo menos, que tivesse um portefólio interessante. Precisava de encontrar um lugar entusiasmante, que me desafiasse, onde pudesse crescer e ter contacto com novas experiências, pessoas, métodos e recursos. Agarrar-me a esta convicção, de que eu merecia estar num sítio que correspondesse minimamente ao meu desempenho académico — que me saiu do pelo — foi duro. Fez-me duvidar do meu valor enquanto profissional inúmeras vezes e questionar se estava com as expectativas demasiado elevadas. Bati repetidamente com a cabeça na parede. Perdi a esperança não sei quantas vezes e senti-me, sempre, uma falhada. 

Pela primeira vez, aceitei participar no Bootcamp do Projeto Emprego da Associação Salvador. Não vos vou mentir, foi um golpe profundo no meu orgulho. Gosto muito da Associação Salvador, mas sentia que, no dia em que tivesse de recorrer a um dos seus projetos de integração, estaria a assumir a minha inferioridade enquanto cidadã, a vitimizar-me por ter uma deficiência e não estar a conseguir a arranjar emprego autonomamente. Na prática, senti vergonha e embaraço. Para mim, significou mais uma derrota, por muito capacitista que tudo o que eu possa estar a dizer agora seja. Mas mesmo assim, pedi ajuda. Participei no Bootcamp e nos respetivos workshops e dinâmicas e, confesso-vos, que fiquei totalmente rendida. Adorei, mesmo. A nossa mentora foi a Alcina Monteiro, coach de comunicação, entre outras soft-skills, que fez um trabalho excelente connosco. Puxou por nós e acreditou nas nossas capacidades. Pela primeira vez, desde há muito tempo, voltei a sentir um pouco mais de autoconfiança. Estou-lhe, mesmo, muito grata pelos ensinamentos e técnicas partilhadas. Tenho, também, a agradecer à Associação Salvador por ter aturado a minha instabilidade emocional, alguma da minha presunção, e nunca ter desistido de mim, mesmo quando eu desistia de mim mesma. 

Com o Bootcamp terminado, mas sem nenhuma proposta à vista, os dias rapidamente voltaram a ganhar uma cor mais cinzenta e escura. Os dias foram passando, as semanas crescendo e eu, parada, sem atividade. Já quando tinha perdido, novamente, todas as minhas réstias de esperança, recebi inesperadamente um e-mail. Não estava à espera de nenhuma resposta… Era um contacto da Uber. Aparentemente, continuavam interessados em mim e queriam entrevistar-me de novo. Através da Associação Salvador e da empresa de recrutamento Michael Page uma primeira entrevista tinha ocorrido em agosto de 2021, para uma vaga de apoio ao cliente em que, supostamente, incluía serviço telefónico. Honestamente, na altura senti-me um pouco indignada, por duas razões: a função estava completamente fora da minha área académica e profissional (marketing e comunicação) e incluía uma tarefa que não me fazia o mínimo de sentido, tendo em conta a minha patologia e consequente dificuldade na comunicação oral: falar ao telemóvel. Contudo, aceitei ir a esta entrevista, um pouco pela insistência que foi feita pela Michael Page (obrigada por isso!). 

Desta vez, fizeram questão de frisar que, embora a função fosse a mesma que já me tinha sido apresentada, eu nunca iria ter de fazer contactos telefónicos. Adaptaram as funções da vaga à minha realidade enquanto pessoa com deficiência. A Uber, não só se lembrou de mim e manteve o seu interesse, como refletiu sobre o feedback que eu tinha dado no passado. Logo após esta segunda conversa ter acontecido, por muito que eu não quisesse lançar foguetes antes do tempo, tive de imediato um bom pressentimento. Afinal, quantas empresas voltam até nós, após termos recusado uma oferta de trabalho?

To be continued…

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Raquel Banha

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Comments

  1. Maria Constança Santos

    Raquel dura realidade. A vida é um combate de todos os dias, e, por vezes de toda uma vida. Eu admiro-te, sei que tens uma força, pois nem sei, onde vais buscá-la.
    Espero que um dia os teus desejos sejam concretizados.
    Beijinhos grandes Raquel, gosto sempre de te ler.❤❤

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