A guerra invisível

Sou doente de alto risco. Tenho uma insuficiência respiratória grave, de grau III, e todos os anos, normalmente, tenho uma grande infeção respiratória, para a qual sou obrigada a tomar, muitas vezes, mais do que um antibiótico. Insiro-me nos vossos discursos de “mas a covid-19 só afeta os velhotes e os doentes”. Eu sou uma doente. Uma doente de 24 anos. Doente esta que é mestre, ativista pelos direitos humanos, profissional e com uma gana imensa de viver o que ainda não viveu. O teu mas é o resto de toda a minha vida.

Estou há um ano confinada em casa, mas o que mais me custa mesmo é ter de ouvir, ler e saber constantemente que há pessoas (e não são poucas) que continuam a não “acreditar” na pandemia. Continuam a ler (e partilhar) só os “artigos” que lhes convêm. Preferem acreditar em teorias da conspiração e acreditam piamente que sabem mais que o governo e que fariam muito melhor do que os atuais profissionais e, quiçá, até conseguiriam resolver todos os problemas do mundo. Estas pessoas vivem na sua bolha de cristal e têm a feliz sorte de não serem doentes de risco, terem algum ente querido infetado e em risco de vida e de não conhecerem profissionais de saúde. A mim saiu-me a sorte grande e encaixo-me em todas estas situações.

A realidade é que estamos a viver uma pandemia mundial. Estamos no início de 2021 e a pandemia não vai passar este ano. A vacinação é um processo para mais de um ano e a imunização é limitada. A antiga normalidade não vai voltar. O mundo está do avesso, as alterações climáticas estão-se a fazer sentir por todo o lado. Os extremos radicais políticos teimam em querer assumir o comando, as minorias são constantemente atacadas e por este andar a cova do ser humano quadruplicará de tamanho. Nem o governo nem o SNS irá, milagrosamente, controlar a pandemia, sem que nós sejamos parte ativa do processo.

Esta nossa aparente estabilidade não existe. Vivemos todos em cima de construções sociais, frágeis, que à mais pequena brisa de vento se desmoronam num piscar de olhos. Nada é garantido, nada é estável, nada é para sempre. O conforto deixa-nos apáticos e rouba-nos a nossa natural adaptabilidade. O ser humano chegou onde chegou, não pela sua força, racionalidade ou inteligência, mas sim pela sua capacidade de adaptação ao meio ambiente. Terá a sociedade moderna destruído esta nossa capacidade de sobrevivência? Onde está o nosso verdadeiro egoísmo de sobrevivência? Oiço-vos a dizer que “não podemos deixar de viver”, quando neste momento o essencial é sobreviver. Onde estão as nossas necessidades básicas? O nosso instinto?

Estamos numa guerra invisível, onde o inimigo não é só um vírus, mas acima de tudo somos nós próprios. Os extremos estão a ganhar força, os nossos valores estão em crise e deixou de haver um chão comum entre todos nós. O excesso de informação e acesso à mesma tem fragmentado a nossa realidade e criado muros entre todos nós. Não há uma verdade comum, nem há certezas, e os factos perderam a sua credibilidade. No entanto, insistimos em querer deixar de fazer parte do “rebanho” e afirmamo-nos como alterno-intelectuais-anti-rebanhos-sabedores-da-verdade, quando, cegamente, acabamos por fazer parte do, também rebanho, alterno-intelectual-anti-rebanho-sabedor-da-verdade. Não se enganem, há rebanhos para todos e todos fazemos parte de um. Não somos chicos espertos, não somos mais inteligentes, nem tão pouco somos assim tão importantes. Há vida sem nós. Há vida sem mim e sem ti. Não controlamos nada a não ser nós próprios. As nossas ações. O poder está em nós, não nos governantes. Está em nós refazermos as nossas prioridades. Está em nós protegermos o nosso, nada garantido, futuro. Está em nós.

São tempos difíceis para todos e não estamos todos no mesmo barco, é um facto. Mas o mar e as ondas gigantes são as mesmas. Todos temos de passar o cabo das tormentas de modo a reencontrar a bonança. Ela está lá – só temos de ir ao encontro dela. Ninguém nasce a gostar de estar isolado. Ninguém gosta da solidão e prisão. Nem eu nem ninguém temos mais ou menos facilidade em ficar em casa, isolados do mundo, longes da vida e das pessoas. Ninguém. Mas não nos podemos nunca esquecer que viver em sociedade significa fazer parte de uma gigante rede de interdependência. Todos somos dependentes de algo ou de alguém. A nossa saúde é a saúde da nossa rede de subsistência. Temos direitos e temos deveres. E agora temos o dever de zelar por um bem maior – a nossa rede, a nossa sociedade. Temos o dever de ouvir quem sabe e quem já viveu. Temos o dever de lutar pela nossa liberdade, que tanto está em perigo. A liberdade não está no não uso de máscara ou no podermos sair de casa quando e como quisermos. A liberdade está em todos nós, no pensamento, com inteligência, que nos permite sermos razoáveis, moderados e com bom senso. A liberdade não é imediata. Hoje estamos confinados para amanhã usufruirmos da nossa verdadeira liberdade. Não há liberdade sem responsabilidade, consciência e deveres.

Façamos todos um pouco mais para merecermos este lugar de ouro que é fazer parte de uma sociedade organizada. Façamos e sejamos.

Raquel Banha
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Raquel Banha

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