Capacitismo: a mentira que te contaram sobre a deficiência

Num século em que se fala cada vez mais em minorias, inclusão e diversidade, a deficiência, embora, infelizmente, esteja sempre em último lugar nestas andanças, tem sido também inserida em vários movimentos ativistas e de consciência social. A perceção social da deficiência tem-se alterado bastante e, principalmente, tem sido bastante alvo de crítica e questionamento constante (no bom sentido).

Tal como nos outros movimentos sociais existem os termos mansplaining, homofobia, racismo, entre outros, na deficiência também existe o capacitismo. Sim, isso mesmo: CA-PA-CI-TIS-MO. Em inglês ableism (de abled). Pessoalmente, penso que o capacitismo equivale, por exemplo, ao racismo sistémico. Ou seja, não é propriamente derivado da má vontade das pessoas, mas sim da cultura social impregnada “subtilmente” na sociedade e educação. Todos nós, sem exceção, já praticamos atos de capacitismo. Todos vocês e até mesmo eu.

Tal como tudo na vida, há que ter a humildade para aprender e assim alterar o nosso comportamento e pensamento perante conhecimento novo.

Vamos lá ao que interessa:

O QUE É O CAPACITISMO?

O capacitismo é a discriminação e preconceito social, em forma de ações feitas por, normalmente, pessoas sem deficiência, contra pessoas com deficiência (aka diversidade funcional) e pode ser intencional, não intencional e internalizado (quando surge na perceção que as pessoas com diversidade funcional têm de si mesmas).

Uma sociedade com cultura capacitista (argh… todas?) é aquela que se baseia na premissa de que as pessoas com deficiência têm de ser curadas, que devem ser salvas e que, portanto, são cidadãos inferiores e incapazes.

Para vos mostrar o quão comum isto é, deixo aqui uma lista de exemplos de discursos capacitistas:

1. Premissa de que assim que uma pessoa nasce / fica com uma deficiência, é automaticamente um ser especial:

  • “És uma força da natureza”;
  • “És uma guerreira”;
  • “És uma inspiração”.

Falso. Estando cada vez mais inserida na comunidade de pessoas com diversidade funcional em Portugal, tenho observado vários padrões de situações e comportamento entre mim e os meus pares. Somos ditos desde que nascemos que somos especiais e que não há ninguém como nós. Esta premissa que nos é passada tem várias consequências no nosso comportamento psicossocial. Temos tendência a ser mais egocêntricos, instáveis emocionalmente e, inclusive, estamos sempre, secretamente, a comparar a nossa deficiência com os demais, na esperança de encontrar o fator que nos faz supostamente ser mais especiais do que os outros. Porque todos nós acreditámos que a nossa deficiência é que era “A” deficiência que merecia atenção e reconhecimento.

Além disto, quando não se tem uma deficiência, é comum pensar-se como seria a nossa reação perante o aparecimento de uma deficiência em nós, pressupondo sempre que nunca conseguiríamos viver com as “adversidades” da mesma, fazendo-nos então cair, uma vez mais, na premissa que as pessoas com diversidade funcionais são seres guerreiros por conseguirem viver de facto com a sua deficiência. Este é um sentimento que pode ser transposto, por exemplo, para a maternidade. Nunca ninguém saberá o que é o laço/amor maternal e paternal até realmente ter filhos. São coisas que só se podem saber quando estas situações ocorrem connosco. Até uma pessoa ser mãe ou pai, desconhece por completo o poder do amor pelos seus filhos, que os fazem fazer coisas que até então achariam impensáveis. E não é por isso que estas pessoas são excecionais. É a reação natural aos acontecimentos da vida. É muito mais comum uma pessoa adaptar-se à sua deficiência com naturalidade do que o contrário. Cada um tem os seus tempos, há pessoas que demoram mais que outras. Mas eventualmente todos chegamos lá: à aceitação e celebração. Nem eu nem ninguém somos seres iluminados por conseguir a proeza de viver com a nossa deficiência. É uma capacidade de adaptação completamente normal e expectável para qualquer pessoa, na minha opinião.

2. Premissa de que vocês “podiam estar piores”:

  • “Os meus problemas em comparação aos teus, não são nada”;
  • “É em situações como estas, olhando para ti, que vejo a sorte que tenho!” 

O facto das pessoas dizerem isto, estão subtilmente a dizer que nós somos pessoas de segunda. E estão também a dizer que nós não nos podemos preocupar com problemas “fúteis” (seja lá isso o que for…). Qualquer problema e sentimento de uma pessoa é válido e legítimo. Qualquer! Também eu fico um dia inteiro de trombas por ter perdido o meu chapéu favorito (just happened ☹️ ), ou fico indignada quando não tenho as visualizações que queria. Também choro quando me partem o coração e acho que o mundo vai acabar. Ou fico ansiosa quando o relógio do quarto está inclinado. Comparar-nos com outras situações, minimizando a nossa, é uma estratégia preguiçosa de lidarmos com os nossos próprios problemas. Os problemas não são para ser minimizados e comparados: são para ser aceites e superados. Ponto final! Eu não estou pior que tu, nem tu estás pior que eu. 

3. Objetificação da deficiência como meio de inspiração:

  • “Se tu consegues e tens deficiência, eu consigo!”;
  • “Eu penso em ti e nas tuas dificuldades e fico inspirad@!”

Esta lógica segue um pouco o segundo ponto. Se tu achas que eu não iria/irei conseguir algo por ter uma deficiência, quando de facto consegui, e tu pensas que por isso também conseguirás o que queres, estás a supor, outra vez, que eu sou uma pessoa incapaz e inferior. Ninguém é herói por atingir um objetivo E ter uma deficiência. 

4. Sentimento de que os deficientes são seres inferiores e são “incapazes”:

  • “Tinhas tudo para não conseguires ir para a faculdade”;
  • “Nunca pensei que estivesses empregada!”;
  • “Se te portares mal, ficas como ela!”

Mais uma vez, a premissa de que não conseguimos atingir os nossos objetivos tal como outra pessoa qualquer. 

5. Premissa de que “a cavalo dado, não se olha o dente”:

  • “Eu vou ajudá-la e mesmo assim ela diz-me o que devo fazer em vez de ficar eternamente grata!”

Este é um ponto que tem muito que se lhe diga. Há muita gente que ajuda só porque espera um agradecimento em retorno e para se sentirem bem com elas mesmas (oiçam, por favor, esta letra genial), sem ligar propriamente ao momento de ajuda e a sua eficácia. E, também, à preferência da pessoa que está a ser ajudada. Vou-vos dar um exemplo prático de algo que me aconteceu no secundário e que ainda hoje me está entalado na garganta: 

Eu sempre precisei de auxílio nas aulas para tirar o meu material escolar da mochila e depois arrumá-lo. Na maioria das vezes eram colegas meus que o faziam, sendo que pontualmente eram os professores. Eu sou uma pessoa que preza bastante as suas coisas materiais. Porque tudo custa dinheiro (!!!!!!) e porque tenho o meu próprio brio. A adolescência, sendo ela o caos humano, na maioria das vezes leva os jovens a serem despreocupados e rebeldes. Eu também passei por tudo isso, claro. Mas ainda assim, gostava de ter o meu material minimamente decente, ao contrário das outras pessoas que estavam sempre com os livros e cadernos rasgados, dobrados e manchados. Como tal, quando as aulas terminavam e os meus colegas ajudavam-me a arrumar a mochila, eu tinha sempre o hábito de dizer como queria que as coisas fossem arrumadas. Porque, 1 – normalmente as pessoas perguntavam-me sempre como é que o deviam fazer (aparentemente não é uma coisa que os adolescentes façam com regularidade); 2 – porque sou pessoa e tenho a minha personalidade e opinião. Portanto, sempre disse isto de forma automática e natural. Para vos explicar melhor: eu tinha uma ordem específica para arrumar os livros para que eles não ficassem com as pontas dobradas e rasgadas, bem como um local específico para pôr a minha água e iogurte, de modo a que não rebentassem e cagassem as minhas coisas todas. Acho que é lógico e qualquer pessoa faria isso, não?! Pois bem, ainda hoje não sei quem foi, mas ou uma colega ou professora minha fizeram queixa de mim e criticaram, nas minhas costas, esta minha atitude, sem nunca terem falado comigo abertamente sobre este assunto. Ainda hoje continuo a ser apelidada de obsessiva, o que pode ter algum fundamento psicológico (visto que tenho OCD), mas mesmo assim, não compreendo como tal situação desencadeou tudo isto.

6. Premissa de que no relacionamento com pessoas com diversidade funcional temos de ignorar a deficiência: 

  • “Quando olho para ti, nem vejo a cadeira de rodas! Esqueço-me logo que tens uma deficiência.”

Are you blind? 

A deficiência não é para ser ignorada. Ela existe e faz parte das pessoas com diversidade funcional. É para ser reconhecida e tratada com naturalidade como qualquer outra característica individual.

Além destes exemplos infindáveis de frases capacitistas, existem também inúmeros comportamentos que têm por base este preconceito:

1. Sentimento paternalista:

  • Tratar as pessoas com diversidade funcional sempre por “tu”, mesmo no primeiro encontro com pessoas estranhas; 
  • Beijar as pessoas com deficiência na testa ou bochecha sem nunca as teres conhecido.

2. Sentimento de que as pessoas com diversidade funcional são inferiores e incapazes:

  • Quando o deficiente está acompanhado, falar e olhar sempre para o acompanhante, como se a pessoa não existisse, mesmo quando ela responde;
  • Falar devagar ou com tom infantilizado;

 3. Premissa que as pessoas com diversidade funcional têm de ser automaticamente curadas e ajudadas:

  • Pegar e conduzir, sem perguntar, a cadeira de rodas manual de uma pessoa;
  • Estar constantemente a mostrar tratamentos, ajudas técnicas, entre outras coisas de cariz médico;
  • Assumir que a pessoa com deficiência precisa de ajuda para tudo, e sempre.


MAIS INFORMAÇÕES IMPORTANTES

  • Suposições gerais sobre as pessoas com deficiência:  
    • Estão doentes;
    • Precisam de ser salvos;
    • Não conseguem ser felizes;
    • Não podem viver sozinhos;
    • São incapazes de constituir família;
    • Não estudam nem trabalham;
    • Não namoram nem fazem sexo;
    • São santos, príncipes e princesas;
    • Não conseguem fazer uma vida “normal”;
    • São hiper mega inteligentes ou completamente burros (não há espaço para a mediana);
    • Qualquer coisa que uma pessoa com diversidade funcional faça, mesmo que terrível seja, é para ser elogiada e admirada (pois as pessoas com deficiência são incapazes de fazer algo verdadeiramente bom);
    • Todas as pessoas com deficiência têm de criar a sua própria associação, escrever, pelo menos, um livro autobiográfico e interessarem-se ou trabalharem em “causas” sociais;
    • Todas as deficiências são visíveis;
    • Uma pessoa que anda em cadeira de rodas não pode andar;
    • Uma pessoa que se desloca em cadeira de rodas tem, automaticamente, força nos braços e não sente os membros inferiores;
    • And the list goes on and on!

  •  Termos incorretos:
    • Necessidades especiais (ver isto);
    • Doente;
    • Pessoas especiais;
    • Pessoas incapazes;
    • Deficientes.
  • Sentimentos internalizados que as pessoas com deficiência podem ter sobre si mesmas:
    • “Sou doente”;
    • “Preciso de ser curada”;
    • “Nunca vou ser feliz”;
    • “Nunca conseguirei viver sozinha e ser independente”;
    • “Nunca terei o emprego dos meus sonhos”;
    • “Não posso viajar nem passear”;
    • “Nunca irei namorar”;
    • “Nunca formarei uma família”;
    • “O meu corpo é disforme, é feio, está danificado”;
    • “Sou um ser incapaz e inferior.”

Praticamente tudo o que enumerei aqui é o dia a dia da generalidade das pessoas com diversidade funcional e, inclusive, são coisas pelas quais eu já passei e continuo a passar. Não me quero estar aqui a alongar demasiado, mas gostaria aqui de deixar um episódio que, na altura, potencializou bastante o meu capacitismo internalizado e que só agora, cerca de 7 anos depois, tenho a consciência e informação suficiente para decifrar o ato de capacitismo que foi praticado. 

Estava no secundário (again…) e tinha ido lamentar-me a uma professora sobre o facto de, uma vez mais, terem colocado uma aula no primeiro andar, ao qual eu não tinha acesso. Ao que a professora, desvalorizando completamente a minha queixa, me diz algo do género: “Oh, não fiques chateada. Isso até é bom sinal! Quer dizer que as pessoas quando olham para ti não veem a tua deficiência!”. Aquilo, durante bastante tempo, ficou a matutar na minha cabeça, pois de facto não sabia qual deveria ser a minha opinião e reação sobre o que me tinha sido acabado de dizer. “Será que é verdade? Que devo ficar contente quando as pessoas se esquecem da minha deficiência?”, pensei eu inúmeras vezes. Mas hoje, sei. Hoje sei da falácia que me foi dirigida e do quão capacitista foi esta atitude. A deficiência não é para ser esquecida ou ignorada. A deficiência existe, é real e faz parte de mim tal como qualquer outra característica que compõe a minha pessoa. A deficiência é suposta ser tida em conta. Colocar aulas de estudantes sinalizados como tendo uma deficiência física em sítios inacessíveis é falta de respeito, profissionalismo e atenção. E o facto de isto me ter acontecido tanto no secundário como universidade só mostra a falta de competência e rigor que a sociedade tem para com pessoas com diversidade funcional. Falácias como esta são inaceitáveis e reforçam o preconceito sistémico contra as pessoas com diversidade funcional, ainda por cima em locais de formação e ensino, quando o objetivo é esse mesmo: formar e ensinar. 

Esta mesma professora chegou, inclusive, a chamar-me ao seu gabinete para me dizer que os professores se queixavam que eu estava menos simpática, mais fria e calada, caindo, novamente, na premissa de que os deficientes são santos, agentes de inspiração e bobos da corte, não podendo nunca ser exigentes e estar zangados com a vida e as pessoas. Ainda hoje encolho os ombros e ignoro muita coisa, mas sei que, cada vez mais, tenho a confiança necessária para exigir, alertar, criticar e corrigir erros persistentes como estes que existem na nossa sociedade.

Porque as pessoas com diversidade funcional não são caprichosas, ingratas, nem demasiado exigentes. Somos antes assertivos e conscientes dos nossos direitos humanos. Queremos o mesmo nível de rigor e tratamento, não porque “merecemos”, mas sim pela mesma razão que todos vós, corpos funcionais, têm esse direito: viemos todos dos tomates de um homem e fecundamos um óvulo de uma mulher. Porque o sol quando nasce, nasce efetivamente para todos (a menos que esteja nublado).

Espero que tenham aprendido algo com este meu texto! Espero ter-vos como aliados na construção de uma sociedade mais consciente, informada, diversa e inclusiva. A mudança começa também em vocês! 

Partilhem este texto caso achem que mereça ser lido por mais gente 😊

Obrigada,

 

 

+1
2
+1
2
+1
0
+1
0
+1
0
+1
0

Raquel Banha

Partilha este artigo

Comments

  1. Vitor

    Eu fiquei deficiente de forma progressiva aos 30 anos. Até à data, não tinha qualquer conhecimento sobre deficiência, certamente cometi muitos erros. Concordo com o que escreveu, agora passo pelo mesmo. Mas existe também um outro grupo, não têm deficiência, sentem-se da mesma forma rejeitados. São os INCEL.

  2. joana silva

    olá, eu sou uma aluna do 8º ano da escola EB 2,3 D. Martim Fernandes e estou a fazer um trabalho sobre capacitismo e diversidade funcional. só queria que soubesses que ver o teu ponto de vista ajudou-me imenso no meu trabalho, e que no mesmo vou te mencionar. mais pessoas deviam ler o que tu escreves para tentarem não ser capacitistas intencionalmente.

    1. chairleader

      Olá Joana,
      Fiquei muito feliz por ler o teu comentário. Ainda bem que o meu texto te ajudou a fazer esse trabalho! Muitos parabéns por teres escolhido um tema tão importante, que é tão esquecido no nosso ensino. Parabéns e obrigada. Boa sorte! Alguma coisa, estarei por aqui 🙂
      Beijinhos,
      Raquel

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *